Serelepe. Foto: Arquivo da família

Serelepe, o gato mais idoso do trio que adotamos, deprimiu-se, cansou de viver

Tudo demais é veneno. A existência alongada em demasia causa tédio, nostalgia, saudade do que passou, falta genérica, vaga, não se sabe do quê, talvez do que nunca existiu, ou seja, do nada. Por mais que um sopro de juventude persista como estado de espírito, a idade avança, o corpo envelhece, fragiliza-se, desinteressa-se por alegrias de que outrora se animou e agora, nem, nem.

Aconteceu com Lepe, que virou um felino longevo, Deus me perdoe a comparação, feito Matusalém. A prostração fez-se presente como tirania solerte dos sentidos, chegando aos poucos para não ser percebida, com ânimo de ficar. O corpo amolecido pedia cama, impunha deitar-se em qualquer lugar, entregar-se ao alheamento do sono em sonecas cada vez mais frequentes, ocasionando baixas hospitalares na suposição de que estaria doente.

Dormir é necessário para recarregar as energias gastas na atividade de viver. Dormir demais é fugir da realidade, na esperança de sonhar com algo melhor. O depressivo é um aflito, angustiado, que ou não dorme o suficiente ou se torna um dorminhoco permanente, acorda sem querer levantar, desejando dormir novamente e sonhar, sonhar, sonhar sonhos coloridos, sem gosto de despedida no ar, sem cheiro de partida, de separação, de tristeza antecipada.

Lepinho sentiu as mudanças no corpo, na coragem de transpor obstáculos, na vaidade. Energias diminuídas, rabo afinado, apetite perdido, lentidão nos movimentos sem virar mosca morta para os adversários nos combates. Tornou-se um animal depressivo. O que lhe deu fôlego por longo tempo foi ser um gato filósofo, armazenando felicidade e alegria para ir gastando enquanto pudesse.

Encontrado, havia 11 ou 12 anos, em dia chuvoso, nas cercanias do colégio Boa Viagem, Recife, onde minhas filhas Larah e Jéssica estudavam. Algo rajado, tiquinho de vida, molhado pela chuva, caminhava trôpego e trêmulo de frio, dirigindo-se ao pires de leite que alguém de bom coração deixara junto ao depósito de lixo na calçada, com esperança de que o bebê bichano fosse visto e adotado, salvo de atropelamento, das intempéries ou de outras infelicidades.

As adolescentes, astuciosa e amorosamente, acolheram o filhote dentro da bolsa de livros, temerosas de reprimenda dos pais que após a morte de Mimi, gatinha recolhida de uma árvore em tenra idade e ao desamparo, partira 11 anos depois para a eternidade. A família adotante, para evitar sofrimentos futuros, decidiu nunca mais praticar adoção, renunciando a esse ato piedoso de caridade. Lepe fez o percurso até nossa casa, calado, quase empacotado, presumindo que se o acolhimento fora tão secreto, cedo iria por água abaixo, caso no transporte fosse descoberto.


Certeza havia de que mal algum lhe adviria de sua clandestinidade. Ele se comunicava bem com o mundo, interpretava os fatos do seu entorno e transmitia suas vontades quase como gente aos tutores: se queria beber água corrente, plantava-se à porta do banheiro, miava ou virava estátua por sobre a pia, imóvel, de olhar súplice, até que alguém chegasse para abrir a torneira. Se queria carinho, deitava-se ao chão, espreguiçando o corpo à frente de quem iria acariciá-lo. Se desejava atenção, deitava por sobre o que fazíamos, páginas de livros que líamos ou de papéis em que escrevíamos, estendia-se também no teclado dos computadores, e tornava difícil a iniciativa de contrariá-lo.

Quando sentia ímpetos de brigar, na época em que morávamos no Clube de Campo Alvorada, à beira da mata Atlântica, em Aldeia, sempre havia parceiros para uma boa escaramuça, com dentadas, arranhões, rugidos felinos de bom tamanho, tufos de pelos dos combatentes voando pelos ares ou espalhados nos ringues dos enfrentamentos. Lepinho era um campeão, jamais correu da luta, feito galo de briga apanhado.

Divertia-se deixando pássaros abatidos ou morcegos semimortos como presentes sobre as camas das tutoras Larah e Jéssica, adoráveis companhias de travessuras. Ambas não gostavam das oferendas, mas não tinham como proteger as vítimas dessas despretensiosas atrocidades. Dizem que os gatos têm sete vidas. Lepe, estava enfadado de tanto que vivera, quando recebeu correspondência do céu, lugar onde ficam os inocentes, avisando-o de que tinha pouco tempo da sétima existência. Adoeceu, foi internado em hospital médico-veterinário onde não lhe faltaram carinho, medicações e atenções, mas nada se pode fazer em favor de pacientes de encontro marcado com o Eterno.

A equipe de médicos veterinários, Dra. Daniela, Dra. Beatriz e Dr. Bruno, fez o possível para mantê-lo vivo, mas ele se foi, levando e deixando saudade, crente de que, mais cedo ou mais tarde, seria premiado com uma oitava passagem no planeta Terra, amparado na bondade infinita do Grande Arquiteto do Universo. Vai tranquilo, sabedor de que não o esqueceremos, porque o amamos muito.

Abrigou-se na fazenda de Sica, Caturité, de terreno fértil, cheia de preás, aves, cigarras e outros viventes que afastam a solidão tumular com seus cantos e ruídos. Se algum arbusto brotar em seu último abrigo e miar ou ronronar, contrariando o costumeiro silêncio das árvores, será chamado Serelepe, na esperança de que ele esteja de volta.

O atributo alt desta imagem está vazio. O nome do arquivo é colunaseiqueira.jpg

José de Siqueira Silva é Coronel da reserva da PMPE
Mestre em Direito pela UFPE e Professor de Direito Penal

Contato: jsiqueirajr@yahoo.com.br
Instagram: @j_siqueiras
Facebook: www.facebook.com

11/03/2025 às 19:16

Compartilhe essa matéria, escolha uma rede abaixo.

Check Also

Jiboia e outros animais silvestres rareiam nos arredores de Gravatá

Foto: Pedro Pina/Museu Nacional