Pingo é um cãozito, quase do tamanho de um mosquito, megalomaníaco. Autoimagem e autoestima deformadas, olha-se no espelho e se vê gigante, um leão careca super esquisito, orelhas crescidas que lhe permitem ouvir ondas sonoras magnéticas e prestam-se a voar. A cara espelhada é de guaxinim, animal inteligente que para ser gente só precisa falar.
Mirando-se melhor, imagina-se um elefante, menos a tromba que lhe enfearia a presença. Olhem que esses paquidermes se orgulham muito da tromba, quinto braço de mil utilidades: cheirar, dessedentar-se, levar alimento à boca, esguichar água ou areia no corpo para limpar-se. Demonstra força quebrando arbustos, removendo árvores para abrir caminho ou alimentar-se. Guardadas as proporções, assemelha-se à cauda dos macacos, também um braço à parte, com diferenças de localização e de funções. Localizada na traseira do corpo, a natureza destituiu-a do olfato. Se cheirasse, os símios poderiam perceber o mundo como feito de bosta. Uma injustiça contra os humanos que as vezes vivem na merda e não se dão conta disso.
Grande em pingo, na verdade, só a chatice, o apego amoroso aos seus donos e a vaidade.
Levado aos veterinários, uma junta deles, descobriu-se que talvez um transplante de cérebro, trocando o dele pelo de uma minhoca, fosse o tratamento ideal, porque minhoca é animal humilde, conforma-se em viver por sob o solo, não ladra nem morde, não assusta nem ameaça ninguém.
Pingo foi submetido a exame nem telescópio, daqueles que detecta até poeira nas estrelas, e constatou-se que portava um mal grave, incurável deformação de caráter que o levava a ser feliz, como certas pessoas, detestando o próximo. Quando os outros eram mil vezes maiores e mais ferozes do que ele, um rinoceronte, por exemplo, mordia-lhes o rastro e saia orgulhoso como vencedor. Certa vez brigou na paraíba, com as pegadas milenares de um dinossauro, e não deu outra, nocauteou o contendor.
Esse cãozito, grande como um cisco, era de hostilidade tanta que não tinha amigos. Todos temiam agradar-se dele. Nem quando dormia era modesto. Sonhava sempre a mesma aventura, com asas e corpo de toneladas voava por sobre as nuvens, expelindo chamas e um braseiro que fazia churrasco de seres vivos.
A solidão é inimiga da virtude, assegurou São Tomaz de Aquino, Pingo sentiu-se só, apenas o dono e a dona o amavam. Pensou em suicídio, mas a dificuldade era jogar-se na frente de um avião, em pleno vôo, que o levasse direto ao céu, onde seria prestigiadopor São Pedro, melhor dizendo, onde ele prestigiaria o Santo, concedendo-lhe sua primeira entrevista no além.
Numa dessas raras chances da sorte, o cãozinho, recentemente promovido a gente pelos seus méritos, agora era cão Zito, foi agraciado pelo destino com uma cadelinha linda, simpática, preciosa, oferecida e atraente como só ela, adotada por seus protetores. Zito, o cão, agora religioso porque tinha nome de gente, considerou irmã a recém-chegada, recusou-se a tirar raça com ela porque incesto seria um pecado grave.
Gotinha de felicidade não durou muito, sucumbiu à frustração e ao desgosto. Inscreveram-lhe na lápide: Aqui jaz gotinha de felicidade. Morreu donzela e deixou viúvo virgem.
Anos depois, vaidoso como sempre, Zito deu uma festa de arromba. Fora promovido a cão dos infernos e mudara de nome outra vez. Doravante chamar-se-ia cão Naro, superior de lucífer.
Anos depois, pingo fez uma longa reflexão e concluiu quão bobo havia sido com escolhas fantasiosas sobre a realidade. Dulcificou-se, aderiu à mansuetude como norma de vida e se promoveu à estima de todos. Adora quando o beijam e o carregam nos braços. Mostra os dentes sem rosnado, sem ameaça, porque aprendeu a sorrir com eles. Espera uma parceira para multiplicar-se em muitos pingos num oceano de simpatia e bondade.
José de Siqueira Silva é Coronel da reserva da PMPE
Mestre em Direito pela UFPE e Professor de Direito Penal
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20/01/2023 às 09:50