O ébrio, na periferia da cidade, dirigia seu automóvel novo em alta velocidade. Bairro pobre, rua escura, tentou atropelar um gato que perseguia um rato para saciar a fome. Gato é bicho que pega bicho, predador natural de catita e ratazana, o povo sabe disso.
Na hora do aperto ele serve de caçador ou de caça, pega o de comer ou é comido. Esse, entretanto, não era o dia do bichano, escapou, mas quase morreu de susto. Os eleitores bem que podiam votar mais em gato do que em rato, e reduzir a roubalheira no país. O difícil é distinguir um do outro com a maquiagem das campanhas eleitorais em cujos filmes não há bandidos, só mocinhos.
O desordeiro continuou perigosamente ao volante em busca de emoção. Sádico, precisava matar nem que fosse uma galinha, para espantar o tédio, a mesmice da vida fácil e farta com dinheiro abundante de transações ilícitas, inclusive de corrupção.
O endiabrado viu um cão atravessando a rua, desatento, faminto, pelo sujo, arrepiado. A cauda recolhida entre as pernas, a cara comovente de tristeza e de resignação. O bêbado endemoninhado acelerou o veículo ao invés de acionar os freios. Dessa vez sua vítima não escaparia. Se fosse uma pessoa faria o mesmo. Queria testar a lataria do veículo, ter a sensação forte do impacto dele com um corpo vivo.
“Os eleitores bem que podiam votar mais em gato do que em rato, e reduzir a roubalheira no país”
Atropelou o animal, parou o carro e desceu para conferir o resultado. O cão, inerte no chão, parecia morto ou desmaiado. O canicida achou graça. Na indecência do seu prazer entendia que nada demais fizera. Num país em que vidas humanas não importam, perdem-se na violência diária da criminalidade, do trânsito, das viroses pandêmicas, vidas de cão são insignificantes.
Percebeu, então, que a frente da Mercedes danificara-se. Irou-se com o prejuízo e passou a chutar, freneticamente, o presumido cadáver canino. Um popular que assistiu à cena indignou-se e interpelou o suposto canicida:
- Você está louco? Que barbaridade é essa!
O atropelador enfurecido retrucou: - Se esse rabugento é seu, trate de indenizar meu prejuízo.
O interpelante rebateu: - O rabugento vale mais do que você, mas não é meu. A alma que chora, entretanto, pelo sofrimento desse animalzinho, é minha, e manda que lhe fira o bolso, único lugar onde você tem sensibilidade. Ato contínuo, sacou arma de fogo e disparou seis tiros no coração do carro, já que o proprietário não tinha coração, atingindo-lhe o tanque de gasolina.
Em pouco minutos as chamas consumiram o veículo. O proprietário teve um desmaio. Verificou-se, então que o cãozinho de bobo não tinha nada. Fingira-se de morto para ficar vivo. Levantou-se, mijou no corpo do seu agressor, ciscou no chão para limpar a inhaca dele, e prometeu a si mesmo nunca mais atravessar rua distraído.
José de Siqueira Silva é Coronel da reserva da PMPE
Mestre em Direito pela UFPE e Professor de Direito Penal
da FOCCA
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08/09/2021 às 20:22