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O Direito Penal do inimigo na tentativa do golpe de Estado no Brasil


“Bandido bom é bandido morto!”, “Direitos humanos só para humanos direitos”. “Presídio não é hotel”. “É só não cometer crime”. Essas e outras inúmeras afirmativas do gênero se tornaram constantes, e até mesmo bordão de uma parte da sociedade brasileira, máxime na última década. Os defensores desse modelo de um Estado penal implacável e impiedoso, estilo tolerância zero extrema, foi defendido por diversos setores da sociedade. Majoritariamente por uma parcela do eleitorado que aderiu politicamente à narrativa e ao projeto de país, defendido pelo grupo liderado pelo ex-presidente da República.

Esse modelo proposto de justiça criminal tem amparo em uma das ramificações da escola penal funcionalista alemã, ligada sobretudo ao jusfilósofo Günther Jakobs e a sua teoria do Direito Penal do Inimigo, também chamada de Direito Penal de 3ª velocidade. Em resumo apertado, Jakobs sugere que são inimigos da sociedade todos aqueles que negam o pacto social, que rejeitam as normas estabelecidas e optam por agir de acordo com as suas vontades individuais, desafiando a vontade geral da coletividade corporificada no ordenamento jurídico, cujo símbolo máximo é a Constituição (documento jurídico-político que define os termos do contrato social).

Neste sentido, expõe Jakobs que quem nega o contrato, que nesse caso é o contrato social, não pode alegá-lo em seu benefício. Por esse motivo, aqueles que não aderem ao pacto social se tornam inimigos da sociedade, não tendo, portanto, direito à proteção jurídica, estabelecida pelas garantias constitucionais contra eventual violência estatal.

A amarra final dessa construção teórica é a existência de dois sistemas de justiça criminal paralelos, de modo que haveria um Direito Penal do Cidadão, exposto em normas gerais do Direito Penal, amparadas pelas garantias constitucionais e processuais, aplicáveis genericamente aos cidadãos de determinado país, sendo digno desse status de cidadão aquela pessoa que aderiu ao contrato social e aceita a configuração normativa da sociedade. Já para os demais, ou seja, aqueles indivíduos que negaram o pacto social e se insurgem contra o arcabouço normativo, Jakobs entende ser possível a justaposição de um subsistema penal diferenciado, com a consequente mitigação das garantias constitucionais dos apenados, em nome da defesa social. Esse seria, então, um sistema normativo penal diferenciado, destinado aos inimigos da sociedade (não cidadãos), aqueles que atentam permanente e constantemente contra o Estado e contra a paz social.

Considerando válida a construção teórica do jusfilósofo alemão, a tentativa de golpe de Estado, com tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, estaria no ápice da negação do contrato social e da configuração normativa da sociedade, o que, em mero exercício teórico-hipotético, justificaria a classificação dos seus agentes como inimigos da sociedade e a consequente sustação de direitos e garantias constitucionais na persecução penal e na privação de liberdade. Os Direitos Humanos desse grupo, portanto, estariam mitigados, já que essa condição permitiria ou ofereceria uma justificativa para a negação dos direitos do criminoso, legitimando as ações e atitudes violentas, arbitrárias e/ou desumanas.


Em contrapartida, Eugenio Raúl Zaffaroni alerta para o fato de que a necessidade da criação da figura de um inimigo serve para se legitimar o uso desmedido da força para penalizar o criminoso, em razão da negação jurídica da sua condição de pessoa e de cidadão. Essa separação do povo de um país entre cidadãos e inimigos, porém, é incompatível com os modelos de sociedade surgidos com as democracias constitucionais modernas, caracterizadas notadamente pela elevação de todos ao status de cidadão e pela garantia a todos, sem distinção, da titularidade dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição e na legislação ordinária.

No contexto brasileiro atual, não havendo decretação ou expectativa de decretação de estado de defesa, de sítio ou de guerra, momentos nos quais há a previsão no próprio ordenamento normativo de mitigação de direitos e garantias, a todos os envolvidos nos atos do domingo 08 de janeiro de 2023 deve ser assegurada a proteção normativa estabelecida na Carta Magna do País. Ao Direito Penal democrático não cabe revanchismo. Pelo contrário, o seu fim último é justamente o de proteger o cidadão contra possíveis abusos do poder estatal.

Não há, até o momento, nenhum elemento objetivo que possa sugerir que tais direitos e garantias estejam sendo violados, já que as condições nas quais se encontram os detidos cautelarmente pela tentativa de golpe de estado estão bem acima da média das condições encontradas nos presídios brasileiros, lotados com um outro perfil de cidadãos, sem o mesmo poder de voz para chamar a atenção da sociedade as condições precárias as quais são, inconstitucionalmente, submetidos.

Essa pode ser uma grande oportunidade para que seja levado a cabo o debate social, político e jurídico sobre o caráter inafastável e inegociável das garantias constitucionais, da prevalência dos Direitos Humanos e da dignidade da pessoa humana. Afinal, sem esses elementos nunca se sabe quem ou que grupo social pode ser fustigado pelo arbítrio.

O Estado Democrático, Constitucional e de Direito impõe um único Direito Penal, o do cidadão, independentemente do crime em tese cometido.

Isaac Luna é advogado, cientista político e professor universitário


23/01/2023 às 18:14

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