Luiza Maria Pontual. Foto: Divulgação

Linchamento Virtual

A singularidade do atual período histórico, marcado por um grande boom tecnológico e o consequente advento das redes sociais, deixa evidente a insuficiência das teorias para entender os complexos fenômenos desencadeados na sociedade contemporânea. No caso brasileiro, uma sociedade marcada pelo multiculturalismo e pela diversidade, percebe-se uma intolerância e uma enorme dificuldade para conviver com essa diversidade; sendo esse, um ponto desencadeador de ódios e ressentimentos.

Esses sentimentos foram desenvolvidos no terreno fértil da Internet, provavelmente pela rapidez com que circulam as notícias, pela ilusão do anonimato, além do seu alcance global. O discurso de ódio está implicado e contido no linchamento virtual, fomentando a violência para além das redes sociais. Para Santos e Cunha (2019) o termo mais apropriado para esse fenômeno é a ação prática do poder simbólico, que acontece através da linguagem das imposições discursivas e que “criam” verdades e são instrumentos de dominação e formação de uma cultura de massa, que aliena e desorienta. A violência simbólica se transforma, em alguns casos, em violência física.

O sociólogo José de Souza Martins (2015) identifica, no ato de linchar, uma herança das Ordenações Filipinas e das decisões da Santa Inquisição, cujo objetivo era a vingança, a exterminação e não a reeducação com vistas à devolução da condição civil. Na perspectiva dele, qualquer linchamento é lastimável, porque impede a vítima de exercer o direito de defesa. É um produto da emoção e, não, da razão; e na perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda, os brasileiros tendem a ser levados mais pela emoção que pela razão, o chamado “homem cordial”.

A crise social, cria um ambiente favorável à prática do linchamento:  de um lado, com a deterioração da hierarquia social; e, do outro, o desejo de conquista de direitos por parte dos excluídos.

Os linchamentos vêm, justamente, como forma de contestação, no que concerne à distribuição de bens, de direitos e de justiça. Essa é a dimensão sociológica da justiça popular. O linchamento acaba sendo, portanto, uma forma extremada de uma necessidade social de vingança; a revolta reprimida, que encontra um canal de escape.

Segundo Martins, há várias motivações para o ato de linchar. Nos bairros populares das grandes cidades, a principal motivação é o medo de ser vítima de morte violenta; de ser roubado; de estupro; de assassinato; ou, mesmo, de ser ignorado. Outro aspecto, bastante significativo, é o conservadorismo. A motivação conservadora, de cunho moral e repressivo, usada como defesa da própria classe média, do caráter fechado das elites, que rechaçam o estranho, os de fora. Para Martins, é preciso considerar dois planos: a mente conservadora e as ações coletivas violentas, justificadas por essa mentalidade; já que a prática conservadora de impor um castigo a quem tenha agido contra os valores e normas que regem as ações sociais pré-estabelecidas, ou as tenha colocado em risco, movem a população na direção da prática de linchamento. Ainda segundo o Sociólogo, os casos de linchamento crescem quando: aumenta a insegurança em relação à proteção do Estado; bem como a descrença, em relação às instituições. Enfatiza, ainda, o referido sociólogo, que a ação dos linchadores aumenta, significativamente, quando a sociedade entra em crise, com o descrédito nas instituições. Muitos indivíduos pacatos e, aparentemente inofensivos quando solitários, na multidão, deixam aflorar o seu descontentamento e a sua raiva; e essa fúria é multiplicada na multidão, desencadeando uma reação desproporcional aos fatores que a provocaram.

Historicamente, o sentimento que tem prevalecido e sustentado os vínculos sociais tem sido o medo. A respeito do medo, afirma Zygmunt Bauman (2016), instaurou-se uma atmosfera sombria, onde cada um levanta suspeita de quem está ao seu lado; e é, também, vítima de suspeita; bastando muito pouco para que o outro seja percebido como potencial inimigo.

Por outro lado, o Estado, para garantir a segurança, precisa lembrar a população de que há insegurança; o que faz circular, incessantemente, o medo na sociedade. O outro, tolerado e aceito, é aquele que confirma a minha identidade, que pensa como eu. Os que me levam a questionar as minhas certezas, a duvidar das minhas assertivas, pondo em cheque as minhas convicções, devem ser eliminados e destruídos. Significa dizer que a divergência de opiniões leva à impossibilidade de suportar o outro.

Discursos ofensivos são produzidos até que o ódio toma conta de todos, resultando em violência física e culminando em linchamento verbal; não, necessariamente, de uma pessoa, mas de todos os semelhantes – a exemplo de negros, nordestinos, homossexuais, eleitores do partido A ou B e, assim, sucessivamente. Para Fernanda Brun (2013), as redes sociais deram voz, e se tornaram palco, para manifestação da crueldade humana; levando a que o lado, às vezes bárbaro, dos seres humanos, possa aflorar com força, encorajado pela falsa ideia de anonimato.

As redes sociais aceleram o modo de agir e reagir; tornando, assim, o ato de pensar mais rarefeito. Nesse sentido, o pensamento vai perdendo espaço para o agir; e as certezas são produzidas de forma muito rápida, levando a que os julgamentos sejam rápidos e impensados. Os linchadores são sujeitos coletivos, ocultados na multidão e, como não existe, no Ordenamento Jurídico, a figura da pena aplicada sem individualização, cada infrator é julgado, separadamente, de sorte que mesmo com o auxílio da tecnologia, ainda é uma tarefa difícil identificar e julgar todos os participantes de um linchamento.

Luiza Maria é Socióloga e Doutora em Ciências Políticas pela Universidade Autônoma de Madri e professora da Faculdade Nova Roma

06/10/2022 às 18:42

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